Conflitos
africanos envolvem múltiplos fatores
Guerras tribais, genocídios, diversidade étnica.
Essas são algumas das ideias que vêm à cabeça quando se pensa nos conflitos do
continente africano. Mas, ao se considerar apenas o fator étnico como causa, perde-se
a chance de compreender cada conflito, considerando múltiplos fatores.
"Muitas podem ser as causas determinantes e, mesmo que existam algumas que
são comuns à maior parte dos conflitos, sempre há especificidades",
ressalta Pio Penna Filho, historiador e professor da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMG).
Em conflitos como o de Ruanda, por exemplo, prevalecem fatores étnicos. No
Sudão, fatores religiosos. No caso recente do Quênia, questões políticas e de
poder assumiram maior importância. "Cada conflito deve ser estudado nas
suas características próprias, inclusive, analisados em perspectiva histórica,
para que possamos melhor compreendê-los. Não acredito em generalizações, ainda
mais quando se trata de um continente tão amplo e diversificado em termos
culturais como o africano", diz o historiador.
A escassez de recursos, associada ao aumento da demanda por parte de uma
população pobre e, em muitos casos, miserável, são elementos que pesquisadores
consideram relevantes para pensar nos conflitos africanos. A incapacidade dos
governos atenderem essas demandas provoca, por vezes, uma reação violenta por
parte de sectores sociais que se sentem abandonados pelo Estado. O
prolongamento dos conflitos nos Estados, também tem sido associado à possibilidade
dos grupos rebeldes se “auto financiarem”, como foi o caso de Serra Leoa e
Angola (nos quais os rebeldes controlavam minas de diamantes). “Vale lembrar
também que durante a década de 1990, a mais violenta para a África no período
pós-independência, havia muito armamento disponível no mercado internacional e
a preços relativamente baixos e quase sem nenhum controle internacional”,
esclarece Penna.
A combinação entre os múltiplos fatores complica a possibilidade de uma
explicação simplista dos conflitos. Paulo Fagundes Visentini, professor de
relações internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
coordenador do Centro de Estudos Brasil-África do Sul, diz que a falta de
desenvolvimento econômico, o traçado artificial das fronteiras e a dimensão
inviável de muitos países, legados pelas potências europeias, potencializam as
contradições normais do continente. Para ele, os conflitos são deformados pelo
colonialismo e neocolonialismo, que, desde o fim da Guerra Fria, vêm adquirindo
uma dimensão propriamente mais africana.
Durante a Guerra Fria, a África (com exceção da África Austral) foi
influenciada pelas ex-metrópoles, mas, com a globalização, a Europa perdeu
enormemente sua influência e os EUA apareceram com a agenda da segurança
anti-terrorista. Nesse contexto, países como a China, o Brasil e, mais
recentemente, a Índia, surgiram como grandes protagonistas. Visentini, em seu
artigo “A África nas relações internacionais”, faz uma análise da evolução
diplomática dos países africanos, desde o fim da Guerra Fria até a atualidade e
mostra que as sociedades passam por um processo que se aproxima do atravessado
por outras regiões do mundo, ou seja, a construção dos modernos Estados
nacionais.
O fim da Guerra Fria e o avanço do processo de globalização redimensionaram as
relações internacionais e atingiram os Estados mais fracos do planeta,
sobretudo os africanos. A perda da importância estratégica que a África possuía
enquanto vigorou aquele sistema, somada às mudanças estruturais que afetaram a
economia mundial nas duas últimas décadas do século passado, e que continuam em
progresso, são fatores considerados relevantes.
Do ponto de vista econômico, tirando a República da África do Sul e, em menor
grau, a Nigéria, os Estados africanos são exportadores tradicionais de
matérias-primas e produtos agrícolas, ou seja, são primário-exportadores. “Tudo
isso leva a escassez de recursos por parte do Estado e, nesse contexto, a
corrupção – quase epidêmica na África – promove um desastre ainda maior. As
elites africanas têm grande culpa por conta da desagregação social de seus
países”, diz Penna.
Para o historiador da UFMG “a estrutura da economia mundial desenhada pelos
países mais ricos acabou afetando o continente africano mas, nesse sentido, as
consequências também foram globais”. Há ainda uma crítica muito forte ao protecionismo
e aos subsídios agrícolas praticados pela Europa e pelos Estados Unidos que
ajudam a afetar o quadro econômico africano. Esquecer que “a África foi
partilhada pelos europeus no século XIX e que os atuais Estados africanos foram
modelados pelos interesses europeus, que não levaram em consideração
características étnicas e culturais regionais” é não dar visibilidade para as
influências das relações internacionais no continente africano em diferentes
épocas, que deixaram um legado comprometedor.
Conflitos recentes
O caso do Quênia revela uma face da política na África: a falta de democracia.
Embora o quadro esteja começando a mudar, ainda é cedo para afirmar que os
africanos aderiram convictamente à democracia. “A tendência é que o processo de
violência seja contido. Mas ficou o alerta de que a tolerância com a falta de
democracia e com as desigualdades sociais e regionais tem um limite”, diz
Penna.
Já no caso do Sudão, Penna assusta-se em ver como a comunidade internacional
tem deixado repetir um processo de genocídio perpetrado com a anuência do
governo sudanês. “Daqui a pouco iremos assistir políticos ocidentais dizendo
que não sabiam da gravidade do que estava acontecendo por lá, exatamente como
ocorreu em Ruanda em 1994. Mas a verdade não é essa e todos sabem exatamente o
que está acontecendo em Darfur”, acredita.
As lideranças regionais
A África do Sul emerge como uma nova liderança africana. Visentini explica que,
governada por um vigoroso e internacionalmente legitimado movimento de
libertação nacional anti racista, com a emblemática figura de Nelson Mandela, a
África do Sul voltou a se inserir política e economicamente na África, com
capacidade de liderança, conhecimento do continente e uma rede de transportes e
energia que a conectam diretamente com a metade sul do continente. “Através da
União Africana (UA), Pretória tem sido uma incentivadora de soluções africanas
aos problemas africanos, inclusive com forças pan-africanas de interposição”,
diz Visentini.
A África do Sul tem a economia mais avançada e diversificada da África e possui
um regime democrático e uma estabilidade política pouco comum no continente,
mas existem muitas divergências entre suas lideranças e as de outras partes do
continente, principalmente quando o assunto é estabilizar regiões em conflito.
A participação desse país ocorre no espaço da Comunidade para o Desenvolvimento
da África Austral (SADC). Além disso, o papel da África do Sul no continente
está diretamente ligado à transição do apartheid para a democracia, sem que a
violência tenha resultado numa guerra civil generalizada. “Papel central coube
ao carisma e à liderança de Nelson Mandela como fonte de inspiração e reserva
moral para todo o continente”, lembra Penna. O outro bloco regional mais ativo
em termos de segurança regional é a Ecowas, Comunidade dos Países da África
Ocidental, que chegou a criar uma força regional de segurança chamada Ecomog e
que atua em vários conflitos regionais. “A liderança, nesse caso, coube à
Nigéria. Muito mais ativa que a África do Sul”, diz.
Apoio internacional
Muitos organismos internacionais oferecem ajuda humanitária aos países
africanos, mas esses auxílios e contribuições nem sempre são vistos de maneira
positiva. Há críticas que ressaltam os prejuízos que a “ajuda” causaria, por
reforçar a passividade, vir acompanhada de interesses geopolíticos e decisões
externas, sem participação do povo africano, sobre onde, como e quando aplicar
recursos. Para Vicentini, “seria melhor fornecer recursos à UA para que eles
administrassem os recursos. Além disso, a ajuda tem uma visão distorcida dos
problemas e suas causas”.
Já Penna considera fundamental o papel dos organismos internacionais,
principalmente a Organização das Nações Unidas e diversas Organizações Não -Governamentais
(como Médicos Sem Fronteiras, Human Rights Watch, Oxfam). “Sem elas a situação
seria de abandono total para as pessoas que vivem nas zonas de conflito ou em
regiões remotas onde o Estado é praticamente um ente desconhecido. Essas
pessoas estariam abandonadas à própria sorte, ou melhor, à completa falta
dela”, diz. Essas organizações preferem atuar diretamente nas áreas onde cessou
o conflito e que são mais carentes de suporte porque a credibilidade dos
governos africanos é muito baixa ou quase nula. “A experiência recente indica
que boa parte dos recursos que foram repassados para os governos africanos não
foram aplicados de maneira correta, ou seja, em bom português isso significa
que foram desviados. Dessa forma, existindo condições de segurança para as
equipes de ajuda humanitária, elas se fazem presentes. E isso foi e continua
sendo fundamental para milhares de pessoas que não podem contar com seus
governos nacionais”, acredita.
Em busca de soluções
Os conflitos do continente africano suscitam questões relacionadas à sua
resolução, mas não há um consenso entre pesquisadores sobre esse assunto.
Visentini acredita que existam soluções a curto e médio-prazo, pelo menos para
parte deles. Segundo ele, a mídia acompanha os conflitos que se agravam, mas
silencia sobre os que são negociados ou solucionados. “Os africanos têm criado
mecanismos próprios para a resolução de conflitos e se encarregado de várias
forças de paz e negociações”, explica.
A Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (NEPAD), com recursos
sul-africanos, nigerianos e líbios, possibilitará maior estabilidade econômica
e a geração de empregos e obras de infra-estrutura. Além disso, a associação
com Índia, Brasil e China cria um contra-peso para que não haja excessiva
interferência externa em problemas locais, geradores de conflitos. “A África
ainda é parecida com a Europa dos séculos XVII e XVIII, quando se formavam os
Estados nacionais, mas a integração em marcha (SADC, SACU, ECOWAS e outros)
deve auxiliar o continente”, estima Visentini.
Já Penna avalia que dificilmente haverá uma solução em curto prazo para os
conflitos africanos. “Embora aparentemente o pior já tenha passado, há ainda um
longo caminho a ser percorrido para que esse quadro seja superado. Isso porque
não se acaba com a pobreza, a miséria e as desigualdades sociais como num passe
de mágica”, diz. O combate à corrupção é apontado como uma das posturas que as
lideranças africanas precisam enfatizar. Com um sistema econômico mundial que
não colabora, a solução para os problemas africanos, para Penna, precisa vir da
própria África, de suas lideranças e de seus povos, e de mudanças na forma como
o mundo fora do continente africano relaciona-se com ele.
“É preciso que a dita comunidade internacional não deixe que situações
controláveis como a de Ruanda voltem a acontecer. Em grande parte foi por
inoperância da comunidade internacional, principalmente da ONU, que o genocídio
em Ruanda ocorreu em 1994. Infelizmente essa é ainda uma incômoda realidade.
Enquanto muito se discute na ONU muito pouco está sendo feito em termos
práticos para estancar de vez um novo genocídio que vem ocorrendo na atualidade
na região de Darfur, no Sudão. É preciso, portanto, agir. Para isso falta o que
chamamos de vontade política”, finaliza.
As análise sobre os conflitos africanos, por sua vez, devem levar em conta a
multiplicidade de fatores e suas diversas composições. Os conflitos afetam a
vida das pessoas em múltiplos aspectos, tanto para aqueles que permanecem em
suas terras, quanto para aqueles que são forçados a se deslocar.